Tirosinemia

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

   A tirosinemia é uma doença onde o organismo não consegue metabolizar o aminoácido tirosina, que é encontrado na maioria das proteínas animais e vegetais e usado para produzir, entre outros, hormônios tireoidianos. A tirosina é metabolizada (“quebrada”) através de um processo de 5 passos, durante os quais é transformada em substâncias inofensivas (e eliminadas pelos rins) ou utilizadas em processos de produção de energia.

 7eaf3af79ef906fbedce02b047e3ac81

   A tirosinemia é uma doença rara e causada por uma mutação em um dos genes que codificam as enzimas responsáveis pela metabolização da tirosina, fazendo com que uma das enzimas não seja produzida em quantidade suficiente ou que a sua função seja prejudicada. Assim, ocorre acúmulo da tirosina ou de seus metabólitos (“subprodutos”) tóxicos em órgãos como fígado, rins e sistema nervoso central, levando a lesão dos órgãos. Essa mutação é hereditária, transmitida pelos pais através de herança autossômica recessiva.

Autorecessiva

   Há três tipos de tirosinemia, dependendo da enzima afetada pela mutação, cada uma com características diferentes:

Tirosinemia Enzima Local da mutação Incidência Órgãos mais acometidos
Tipo I fumaril acetoacetato hidrolase gene FAH (cromossomo 15) 1:100.000* Fígado, rins e sistema nervoso central
Tipo II tirosina aminotransferase gene TAT 1:250.000 Olhos, pele e sistema nervoso central
Tipo III 4-hidroxifenilperuvato dioxigenase gene HPD Poucos casos descritos Sistema nervoso central
* Em alguns locais, a incidência é mais alta pela grande prevalência de genes na população. Na região de Quebec, Canadá, chega a 1:1.856

TIROSINEMIA TIPO I

   A tirosinemia tipo I, causada pela deficiência da enzima fumaril acetoacetato hidrolase, é considerada a forma mais grave da doença. Se não detectada e tratada precocemente, os sintomas costumam surgir logo nos primeiros meses de vida e incluem déficit de crescimento (em altura e peso), diarreia, vômitos, sangramentos espontâneos (a deficiência de fatores de coagulação costuma preceder a elevação das transaminases), hepatoesplenomegalia (aumento do tamanho do fígado e do baço), odor característico (semelhante a repolho cozido) e icterícia (amarelão), evoluindo para insuficiência hepática, renal (por lesão tubular) e osteomalácia (falta de calcificação dos ossos).

Tirosinametabol
Metabolismo da tirosina. Com a falta da FAH, o último passo da metabolização da tirosina está comprometido, levando ao acúmulo dos seus intermediários, principalmente o ácido fumarilacetoacético. Este é, em parte transformado em succinilacetoacetato, que por sua vez é transformado em succinilacetona. A succinilacetona inibe as enzimas HPPD e PBG sintase. A inibição da HPPD leva a um acúmulo ainda maior de tirosina, enquanto que a inibição da PBG sintase prejudica a síntese do Heme e ao acúmulo do ácido delta aminolevulínico causando, portanto, um quadro de porfiria secundária, responsável em grande parte pelas crises neurológicas e parte da lesão ao fígado.

   Se não for feito o diagnóstico nessa fase, a criança pode ainda desenvolver períodos de melhora e piora de crises neurológicas, que incluem quedas no nível de consciência, dor abdominal, neuropatia periférica e/ou insuficiência respiratória, podendo exigir ventilação mecânica. Se não tratada, a morte costuma ocorrer antes dos dez anos de idade, por insuficiência hepática, crise neurológica ou pelo aparecimento de hepatocarcinoma, cuja incidência é superior a um terço em até os dois anos de idade e de quase 100% com o passar dos anos.

45d5c3645b0f25ab3a456efa7a140661

Caso de criança de 4 anos com câncer hepático (hepatocarcinoma, em 3A e 3B), e regiões com displasia que poderiam se tornar novos hepatocarcinomas em 3C e 3D. O risco de hepatocarcinoma na tirosinemia é o maior entre todas as doenças metabólicas. (A. Russo et al., Tyrosinemia: A Review. Pediatric and developmental pathology : the official journal of the Society for Pediatric Pathology and the Paediatric Pathology Society).

OUTRAS TIROSINEMIAS

   O aumento da tirosina no sangue não ocorre apenas em doenças genéticas. Pode ocorrer em recém-nascidos por imaturidade (transitória) da enzima 4-HPPD, na deficiência de vitamina C, no hipotireoidismo, na insuficiência hepática e também pode ser observado erroneamente quando o exame de sangue não é realizado com o jejum adequado.

Pathophysiology_of_metabolic_disorders_of_phenylalanine_and_tyrosine

   A tirosinemia tipo II, também chamada de “oculocutânea”, cursa com espessamento na córnea e na pele da palma das mãos e planta dos pés, além de atraso no desenvolvimento da criança. A tipo III pode apresentar uma variedade grande manifestações, desde pacientes assintomáticos até com deficiência mental severa. Tendo em vista o foco nas doenças do fígado, abordaremos apenas a tirosinemia tipo I.

DIAGNÓSTICO

   Quando há suspeita de tirosinemia (tipo I) pelo quadro clínico ou, antes disso, na investigação precoce de parentes próximos de portadores, o diagnóstico é realizado pela dosagem da tirosina e seus subprodutos:

Achados laboratoriais na tirosinemia tipo I
Aumento na concentração de succinilacetona no sangue e urina (até 100 vezes o valor normal)
Aumento na concentração de tirosina no sangue
Aumento na concentração de metionina no sangue
Aumento na concentração de fenilalanina no sangue
Aumento na concentração de ácido delta amino levulânico na urina
Aumento da alfafetoproteína (até 100 vezes o normal), mesmo na ausência de hepatocarcinoma
Teste genético do gene FAH para investigar as 4 mutações mais comuns

   O diagnóstico pré-natal da tirosinemia pode ser realizado através de teste molecular genético de células fetais colhidas por amniocentese entre 15 e 18 semanas ou por amostras de células de vilos coriônicos entre a 10a. e 12a. semanas de gestação.

TRATAMENTO

   O tratamento da tirosinemia é inicialmente baseado em dieta com restrição de proteínas animais e vegetais (fontes da tirosina) e medicamentoso, com medicação específica (NTBC), além de medidas de suporte (para insuficiência de órgãos) e transplante hepático quando necessário.

   A droga de escolha para o tratamento da tirosinemia é o 2-(2-nitro-4-trifluorometilbenzoil)-1,3-ciclohexanediona (NTBC). Essa medicação inibe a enzima 4-hidroxifenilpiruvatodioxigenase (HPPD), prevenindo o acúmulo de succinilacetona (ver acima gráfico sobre o metabolismo da tirosina), mas mantendo o elevado nível de tirosina no sangue e órgãos. Demonstrou-se que o NTBC (nitisinone, orfadin®), leva a redução e até pode interromper o processo de dano ao fígado, rins e sistema nervoso central. No entanto, além do risco de leucopenia (redução dos glóbulos brancos) e opacificação da córnea (explicável pelos elevados níveis de tirosina) com o tratamento, aparentemente não há redução no risco de se desenvolver câncer de fígado.

   A terapia gênica, tem sido muito estudada na última década, mas os resultados não têm sido promissores. Em testes com animais, mesmo com parte dos hepatócitos (células do fígado) produzindo adequadamente as enzimas, as áreas não corrigidas continuaram desenvolvendo doença e hepatocarcinoma. O mesmo foi observado com o transplante de células hepáticas in vivo com o objetivo de repovoar o fígado com células normais. Aparentemente, só há resolução da doença quando todas as células apresentam função normal.

5afaca1a-7aa4-42e1-83ef-42d025bbab96.jpg

   Assim, o transplante hepático cura a tirosinemia, mas como é um procedimento com riscos e que necessita de medicações e cuidados para toda a vida, não é a primeira opção na maioria dos casos. Está indicado quando não há resposta satisfatória ao tratamento medicamentoso ou quando há diagnóstico ou forte suspeita da presença de câncer de fígado. Em alguns casos, onde há redução significativa da qualidade de vida pela dieta restritiva, opta-se pelo transplante.

BIBLIOGRAFIA

  • Barkaoui E, Debray D, Habes D, et al; Favorable outcome of treatment with NTBC of acute liver insufficiency disclosing hereditary tyrosinemia type I; Arch Pediatr 1999 May;6(5):540-4.[abstract]
  • Holme E, Lindstedt S; Tyrosinaemia type I and NTBC (2-(2-nitro-4-trifluoromethylbenzoyl)-1,3-cyclohexanedione); J Inherit Metab Dis 1998 Aug;21(5):507-17.[abstract]
  • Gartner JC Jr, Zitelli BJ, Malatack JJ, et al; Orthotopic liver transplantation in children: two-year experience with 47 patients.;Pediatrics 1984 Jul;74(1):140-5.[abstract]
  • Heath SK, Gray RG, McKiernan P, et al; Mutation screening for tyrosinaemia type I.;J Inherit Metab Dis 2002 Oct;25(6):523-4.[abstract]
  • Tyrosinemia Genetic Home Reference (National Health Institute)
  • Tyrosinemia Type I Gene Reviews
  • The Pediatrician´s Guide to Tyrosinemia Type I Folheto explicativo produzido pela National Organization for Rare Disorders
  • Tyrosinemia Pal Textos explicativos para familiares produzidos pela University of Washington
  • Weinberg AG, Mize CE, Worthen HG; The occurrence of hepatoma in the chronic form of hereditary tyrosinemia. J Pediatr. 1976 Mar;88(3):434-8.[abstract]
  • Joshi SN; Venugopalan P; Experience with NTBC therapy in hereditary tyrosinaemia type I: an alternative to liver transplantation. Ann Trop Paediatr.  2004; 24(3):259-65
  • Crone J; Möslinger D; Bodamer OA; Schima W; Huber WD; Holme E; Stöckler Ipsiroglu S; Reversibility of cirrhotic regenerative liver nodules upon NTBC treatment in a child with tyrosinaemia type I. Acta Paediatr.  2003; 92(5):625-8
  • Ahmad S; Teckman JH; Lueder GT; Corneal opacities associated with NTBC treatment. Am J Ophthalmol. 2002; 134(2):266-8
  • Gissen P; Preece MA; Willshaw HA; McKiernan PJ; Ophthalmic follow-up of patients with tyrosinaemia type I on NTBC. J Inherit Metab Dis. 2003; 26(1):13-6
  • Luijerink MC; Jacobs SM; van Beurden EA; Koornneef LP; Klomp LW; Berger R; van den Berg IE; Extensive changes in liver gene expression induced by hereditary tyrosinemia type I are not normalized by treatment with 2-(2-nitro-4-trifluoromethylbenzoyl)-1,3-cyclohexanedione (NTBC). J Hepatol. 2003; 39(6):901-9
  • Mohan N; McKiernan P; Preece MA; Green A; Buckels J; Mayer AD; Kelly DA; Indications and outcome of liver transplantation in tyrosinaemia type 1. Eur J Pediatr.  1999; 158 Suppl 2:S49-54
  • Büyükpamukçu M; Varan A; Haberal M; Büyükpamukçu N; Köksal Y; Co?kun T; Yüce A; Kale G; Akyüz C; Kutluk T; The efficacy of liver transplantation in malignant liver tumors associated with tyrosinemia: clinical and laboratory findings of five cases. Pediatr Transplant. 2006; 10(4):517-20
  • Ashorn M; Pitkänen S; Salo MK; Heikinheimo M; Current strategies for the treatment of hereditary tyrosinemia type I. Paediatr Drugs. 2006; 8(1):47-54
  • van Spronsen FJ; Bijleveld CM; van Maldegem BT; Wijburg FA; Hepatocellular carcinoma in hereditary tyrosinemia type I despite 2-(2 nitro-4-3 trifluoro- methylbenzoyl)-1, 3-cyclohexanedione treatment. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2005; 40(1):90-3
  • A. Russo, Pierre & A. Mitchell, Grant & Tanguay, Robert. (2001). Tyrosinemia: A Review. Pediatric and developmental pathology : the official journal of the Society for Pediatric Pathology and the Paediatric Pathology Society. 4. 212-21. 10.1007/s100240010146.
  • NORD. Tyrosinemia type 1.

Artigo criado em: 23/09/06
Última revisão: 02/10/18