Investigação de doenças hepáticas

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

    A prática clínica do hepatologista conta com um “arsenal” de exames complementares para auxiliar o diagnóstico de doenças e função do fígado. Esse texto procura esclarecer alguns conceitos básicos sobre os exames mais utilizados na área e as principais dúvidas sobre o assunto. No entanto, convém ressaltar que exames, isoladamente, sem a correlação adequada com história clínica e exame físico, são pouco úteis e podem confundir mais ainda o diagnóstico.

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EXAMES LABORATORIAIS

    Há um grande número de exames laboratoriais disponíveis comercialmente que têm utilidade na avaliação do paciente com suspeita de doença hepática ou na investigação da sua causa. Os exames podem ser classificados de modo didático em:

   Testes para avaliação de lesão hepatocelular

  • Aminotransferases: aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT)
  • Desidrogenase lática (DHL)

   Testes para avaliação do fluxo biliar e lesão de vias biliares

  • Fosfatase alcalina
  • Gama glutamiltransferase (GGT)
  • Bilirrubinas
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   Testes para avaliação da função de síntese do fígado

  • Fatores da coagulação e atividade de protrombina
  • Albumina

   Testes para avaliação de complicações e estágio da cirrose

  • Classificação de Child-Pugh
  • Alfa-fetoproteína
  • Plaquetas
  • APRI
  • MELD/PELD

   Testes para investigação da etiologia (causa) da doença hepática

HISTOLOGIA

     Chamamos de histologia o estudo dos tecidos. Apesar dos avanços tecnológicos nas últimas décadas e o surgimento de técnicas avançadas de imagem e biologia molecular, o diagnóstico e decisões pertinentes ao tratamento de doenças do fígado ainda depende da análise morfológica do tecido hepático.

   Nos últimos anos, o enfoque da histologia mudou – antes, era concentrada no diagnóstico, agora ela busca trazer informações sobre a integridade estrutural, o tipo e grau de injúria e a resposta do organismo a injúria, sendo necessário para isso além da morfologia convencional, técnicas especiais de histoquímica (coloração de Gomory e Sirius-red para avaliar a fibrose, e Perl´s para avaliação de depósito de ferro, por ex.). Com isso, a avaliação da histologia traz informações que dão a base ao estadiamento da doença e à monitorização do tratamento, incluindo transplante.

fibrose em casca de cebola - sirius red copy

Fibrose em casca de cebola (coloração de Sirius-red)

A biópsia hepática é um procedimento invasivo que requer médico experiente e bem treinado na técnica em que utiliza. A maioria das biópsias é realizada em pacientes internados, mas pode também ser realizada ambulatorialmente em pacientes selecionados, com baixíssimo risco de complicações.

EXAMES DE IMAGEM

   Exames de imagem avaliam a forma, tamanho e contornos do fígado, a presença de nódulos (benignos ou malignos), a presença de sinais que sugiram hipertensão portal (dilatação da veia porta, recanalização da veia umbilical, esplenomegalia), ascite e, em alguns casos, também permite avaliar a causa da doença hepática.

Ecografia (ultrassonografia)

   É um exame que se utiliza de som de alta freqüência e a análise do eco desse som refletido pelos tecidos. Tecidos de densidades diferentes, mesmo dentro de um mesmo órgão, geram ecos diferentes, o que permite a análise de diversas estruturas de modo completamente não-invasivo e inócuo. Avanços à ecografia convencional, como a utilização do efeito doppler para a avaliação do fluxo de sangue e, mais recentemente, com a utilização de contrastes específicos, melhoraram a sensibilidade e especificidade do exame para avaliação dos vasos intra e extra-hepáticos e de lesões focais (tumores). Permite ainda o diagnóstico de cirrose e de esteatose com grande grau de segurança se realizado por médico experiente.

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Hepatocarcinoma demonstrado à ecografia (cortesia do Prof. Dr. Jazon Romilson de Souza Almeida)

   Em hepatologia, a ecografia é o exame de imagem mais utilizado, pelo baixo custo, por ser absolutamente inócuo e ser capaz de esclarecer as principais dúvidas diagnósticas que indicam a necessidade de um exame de imagem. Também é o exame de escolha para o rastreamento periódico do hepatocarcinoma em portadores de cirrose.

Elastografia hepática transitória (FibroScan®)

É um método relativamente recente onde uma onda de ultrassom é aplicada sobre o fígado para, literalmente, avaliar o quanto ele “chacoalha”. Se o fígado é normal, a consistência é um pouco próxima da gelatinosa e reage mais às ondas, se está cheio de cicatrizes (fibrose), é mais endurecido e reage menos.

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   O exame tem a vantagem de ser rápido (o resultado sai na hora) e ser oficialmente reconhecido pelo Ministério da Saúde como suficiente para demonstrar fibrose hepática significativa para fins de receber medicação pelo SUS para a hepatite C, por exemplo.

   No entanto, é um exame caro, não está muito disponível e, principalmente, tem sérias limitações. É capaz de diferenciar bem um fígado normal de um com fibrose avançada, mas não é preciso o suficiente para estágios intermediários, o que torna a sua utilidade limitada para seguimento de uma pessoa para ver se está melhorando ou piorando. Além disso a esteatose e a obesidade, que são cada vez mais comuns, deixam esse exame ainda menos preciso.

Tomografia computadorizada (CT)

   É um exame de raio-X muito mais sofisticado, onde o paciente fica deitado em um leito e  colocado em uma espécie de túnel, onde há um aparelho que emite raios-X de um lado e capta do outro. Este sistema pode ser fixo (na TC convencional) ou girar ao redor do leito enquanto o mesmo se desloca (TC helicoidal). Em seguida, os dados captados pelo aparelho são reconstruídos no computador de modo a formar imagens em forma de “fatias” da altura do corpo que se deseja analisar.

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Aparelho de tomografia computadorizada

   Como densidades diferentes de tecido absorvem quantidades diferentes de radiação, é possível avaliar a forma dos mesmos. Com o auxílio do contraste (por via oral ou endovenosa), é possível avaliar, entre outras coisas, o fluxo de sangue nos tecidos.

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O contraste auxilia muito o diagnóstico na tomografia computadorizada. Nesse caso, o exame sem contraste (esquerda) mostra apenas a cirrose. Quando foi injetado o contraste, aparecem duas lesões sugestivas de hepatocarcinoma que passariam despercebidas no exame sem contraste (fonte)

Na hepatologia, a tomografia computadorizada geralmente é considerada como um exame complementar à ecografia, mas pode ser o exame de primeira escolha em algumas situações, como o rastreamento do hepatocarcinoma em pacientes com cirrose com redução significativa do tamanho do fígado e a presença de múltiplos nódulos de regeneração, onde a avaliação com ecografia é praticamente inútil.

Ressonância nuclear magnética (RNM)

   É um exame realizado com aparelho aparentemente muito semelhante ao da tomografia computadorizada, mas com princípio físico completamente diferente. Há emissão de um campo magnético intenso (o que torna o exame contra-indicado em portadores de próteses metálicas) e de ondas de rádio, com análise direta dos átomos de acordo com a sua característica absorção de energia. Assim, a RNM é um exame muito mais complexo (e dispendioso), permitindo a reconstrução da imagem em qualquer posição e até a análise de funcionamento de órgãos.

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A ressonância nuclear magnética permite, entre outras coisas, quantificar o depósito de ferro no fígado para o diagnóstico e, se necessário, acompanhamento de pacientes com hemocromatose. Na linha de cima, temos um paciente com fígado hepático normal, na do meio uma quantidade intermediária e na de baixo um portador de hemocromatose com intenso depósito de ferro no fígado (fonte)

   Na hepatologia, está indicado principalmente para análise de lesões focais hepáticas como complemento à ecografia ou à tomografia computadorizada. Permite ainda outros tipos de investigação, como quantificar a quantidade de ferro nos casos de hemocromatose e a avaliação do grau de fibrose (elastografia). Também pode ser utilizada para avaliar a árvore biliar (colangiorressonância) de modo menos invasivo, mas sem a possibilidade de realização de procedimentos ou coleta de material, como na CPRE.

Colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE)

   É um procedimento realizado por via endoscópica onde é introduzido um catéter pela papila duodenal (orifício de saída da bile no duodeno) e injetado um contraste, que é fotografado ou filmado por raio-X convencional.

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   Apesar de ser caro e desconfortável, o procedimento tem a vantagem de permitir a realização de biópsia através de cateter especial se for encontrada alguma lesão sugestiva de colangiocarcinoma, a retirada de cálculos biliares e a instalação de prótese em casos de estreitamento das vias biliares (por colangiocarcinoma ou por colangite esclerosante primária, por exemplo).

Endoscopia digestiva alta

   Apesar de não avaliar o fígado em si,  endoscopia digestiva alta tem grande importância para a hepatologia por uma das complicações mais temidas da cirrose: as varizes esofagogástricas.

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Ligadura elástica de varizes esofágicas (Gastrocentro -Unicamp)

   Além de permitir o diagnóstico dessas varizes e de outras manifestações da hipertensão portal, como a gastropatia hipertensiva portal, o tratamento endoscópico das varizes é uma das principais estratégias para salvar a vida do cirrótico nas hemorragias varicosas e evitar novos episódios. Em certas situações, o tratamento endoscópico é realizado como prevenção das hemorragias como alternativa aos medicamentos.

Ultrassonografia endoscópica (USE)

É um exame que surgiu na década de 80 e aos poucos está se tornando disponível para a prática clínica. Trata-se de uma endoscopia onde, ao invés de se usar uma câmera para ver diretamente a parede interna dos órgãos do aparelho digestório, usa-se um probe de ultrassom para se avaliar as camadas abaixo da mucosa.

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Ultrassonografia endoscópica: varizes esofágicas observadas em azul (esquerda); coleta de biópsia hepática (direita) – fonte

   Como o probe fica no interior dos órgãos, é muito mais preciso que o probe sobre a pele para avaliar estruturas mais profundas, especialmente as vias biliares, onde é melhor que ultrassom, tomografia ou até mesmo a ressonância para diagnosticar cálculos pequenos. Além disso, permite realizar procedimentos que seriam arriscados ou muito invasivos por outras vias, como a realização de biópsias em lesões hepáticas ou pancreáticas que estão bem próximas da luz (cavidade interna) dos órgãos.

CONCLUSÕES

   A hepatologia conta com uma quantidade crescente de métodos de investigação à medida em que a tecnologia médica vai evoluindo. Algumas novas tecnologias permitem avanços em diagnóstico, outras em tratamento, mas todas ainda dependem de uma boa avaliação médica por alguém com conhecimento e experiência na área. Não há “exame melhor” em Hepatologia (ou Medicina de modo geral), e dependendo da situação um exame mais antigo e simples como a ultrassonografia pode ser superior a exames caríssimos envolvendo risco de alergias ou uso de radiação.

Artigo criado em: 2001
Última revisão: 15/10/18