Hepatopatia induzida por drogas

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

EPIDEMIOLOGIA

   Os dados sugerem que reações adversas a drogas são responsáveis por uma proporção de doenças hepáticas maior do que a se acreditava previamente. A hepatopatia droga-induzida é responsável por 2-5% dos casos de icterícia em pacientes hospitalizados, 10% dos casos de hepatites em adultos (mais de 40% em maiores de 50 anos) e 25% das hepatites fulminantes.

SUSCEPTIBILIDADE E LESÃO HEPÁTICA

ESPECTRO

Lesão hepática subclínica

   Lesão manifesta apenas como aumento de enzimas séricas é um fenômeno comum comum. Há uma tendência a se acreditar que quanto maior for o nível desse aumento, maior a chance da lesão se manifestar clinicamente. A maioria dessas anormalidades não progride. Para prevenir lesão hepática clínica em pacientes em uso de drogas hepatotóxicas, deve-se fazer monitorização das enzimas e retirar a droga se houver aumento maior que 3 ou 4 vezes o normal.

Tipos de lesão aguda

 A lesão citotóxica, por efeito direto sobre os hepatócitos, inclui necrose, esteatose ou ambas. A necrose hepatocítica leva a icterícia e alterações laboratoriais semelhantes à da hepatite viral. Encontramos níveis elevadas de AST e ALT (de 8 a 100 vezes o normal) e fosfatase alcalina aumentada em no máximo 3 vezes. Casos severos podem evoluir como insuficiência hepática fulminante. A taxa de mortalidade chega a 10% nos casos de isoniazida, iproniazida, metildopa, dantrolene e ticrinafen e é maior com fenitoína ou halotano.

A esteatose aguda, como a causada por tetraciclina parenteral leva a padrão clínico, laboratorial e histológico que lembra a esteatose aguda da gravidez e a Síndrome de Reye. Outras drogas que levam a quadro semelhante são a própria aspirina (Síndrome de Reye) e o valproato.

A lesão colestática lembra clinica e laboratorialmente a icterícia obstrutiva extrahepática. Os níveis das aminotransferases estão apenas modestamente elevadas (<8x). Há dois tipos de lesão colestática. Um tipo é acompanhado de inflamação portal e evidente (mas discreta) lesão hepatocítica. Esse tipo tem sido chamado colestase hepatocanalicular, colangiolítica ou por sensibilidade. A outra, que é acompanhada por pouca inflamação e ainda menor lesão hepatocítica, foi chamada de canalicular, esteroidal ou suave. O tipo hepatocanalicular é exemplificado pela clorpromazina e o canalicular por esteróides anabólicos ou contraceptivos. A taxa de mortalidade é menor que 1%.

Raramente, pode ocorrer doença crônica como sequela de um surto agudo de lesão hepatocelular, mas esta deve ser distinguida da hepatite crônica ativa que pode ocorrer em longa exposição a uma droga sem o aparecimento de doença aguda. Além disso, a colestase intrahepática crônica pode mimetizar a cirrose biliar primária, principalmente por clorpromazina.

Manifestações extra-hepáticas

Lesão hepática crônica

Hepatite crônica ativa

   A doença crônica ativa necroinflamatória droga-induzida tem comportamento similar ao da hepatite crônica ativa autoimune em muitos pontos, como a predominância pelo sexo feminino, marcadores sorológicos (ANA, anti-músculo liso), hipergamaglobulinemia e padrão histológico.

Esteatose

   A esteatose crônica é macrovesicular e tende a apresentar poucas manifestações clínicas, em contraste à microvesicular, droga-induzida. A esteatose produzida por etanol, glicocorticóides e metotrexate leva apenas a hepatomegalia. A lesão causada por asparaginase, valproato ou, em crianças, amiodarona, pode levar a manifestações clínicas de insuficiência hepática.

Fosfolipidose

 Consiste em aumento dos lisossomas com fosfolipídeos, que são vistos à microscopia eletrônica. Os principais agentes são a perhexilina, a amiodarona e a cloroquina. As manifestações clínicas são hepatomegalia com ou sem sintomas de insuficiência hepatocítica. Os outros efeitos colaterais da amiodarona, como neuropatia, manifestações pulmonares e tireoidianas são muito mais proeminentes que os hepáticos.

  A fosfolipidose pode se manifestar como doença hepática pseudoalcoólica, que mimetiza a cirrose alcoólica histologia e clinicamente.

Fibrose e cirrose

   Pode ocorrer devido a hepatite crônica ativa, metotrexate, lesão pseudoalcoólica (fosfolipidose), lesão colestática crônica e lesões ocluindo o fluxo biliar.

Hipertensão portal

   Na ausência de cirrose, pode ocorrer devido a deposição estratégica de colágeno na área periportal e no espaço de Disse e por redução no calibre da veia porta. Os agentes mais conhecidos são os arsênicos inorgânicos, clorido vinil e sulfato de cobre. Outras lesões que podem levar a hipertensão portal não-cirrótica são a fibrose na zona 3 por intoxicação por vitamina A e a hiperplasia nodular regenerativa.

Lesão colestática crônica

Colestase intra-hepática crônica

   É uma síndrome similar à cirrose biliar primária, que se segue à colestase aguda por arsênicos inorgânicos, clorpromazina, proclorperazina, haloperidol, imipramina, tolbutamide, tiabendazol, metiltestosterona, ampicilina, SMZ-TMP e carbamazepina.

Esclerose biliar

   É assim chamada a lesão na árvore biliar por floxuridina infundida na artéria hepática, para tratamento do carcinoma hepático metastático. Lembra a colangite esclerosante tanto na biópsia quanto na colangiografia.

Lesões vasculares

Trombose da veia hepática

   Leva à Síndrome de Budd-Chiari. Pelo menos 100 casos foram descritos como secundários ao uso de contraceptivos orais. (risco relativo de 2).

Doença veno-oclusiva

   Necrose central acompanhada por redução progressiva da veia centrolobular, com oclusão, leva a um quadro semelhante à Síndrome de Budd-Chiari, por congestão hepática e cirrose. Está descrita associada ao uso de alcalóides de pirrolizidina (encontrada em alguns suplementos dietéticos), uretano, tioguanina, azatioprina e outros quimioterápicos, além da radioterapia.

Peliosis hepatis

   É uma rara conseqüência do uso de esteróides contraceptivos e anabólicos. É caracterizada por cavidades preenchidas por sangue que estão distribuídas randomicamente pelo lóbulo hepático. Na microscopia eletrônica, há constantes alterações no alinhamento endotelial (Scoazec, GastrClinBiol, 1995; 19:505). Nas formas menos severas, as células endoteliais ainda estão presentes, mas esparsas. O espaço entre as células endoteliais permitem a entrada de eritrócitos no espaço de Disse. Nas formas mais severas, o alinhamento endotelial é completamente ausente e as cavidades sanguíneas são limitadas diretamente pelos hepatócitos.

Peliosis hepatis (fonte)

   A maioria dos casos são assintomáticos e os exames hepáticos estão normais ou pouco aumentados. Em alguns casos, no entanto, a doença evolui com icterícia, hepatomegalia, hipertensão portal, hemoperitônio e insuficiência hepática. A peliose a longo prazo pode levar tanto a fibrose peri-sinusoidal ou a hiperplasia nodular regenerativa (Izumi, JHepatol, 1994; 20:129; Scoazec, GastrClinBiol, 1995; 19:505).

   As drogas mais freqüentes que causam a peliose hepática são os esteróides androgênicos (anabolizantes), em especial os esteróides 17-alfa-alquilados. Outras drogas incluem azatioprina, 6-tioguanina, cloridro de vinil e derivados do arsênico. Apesar de alguns casos descritos em mulheres utilizando contraceptivos orais, a relação é controversa.

Granulomas

   A hepatite granulomatosa pode ser acompanhada ou não por lesão colestática ou hepatocítica ou ser clinicamente silente.

Lesões neoplásicas

   É bem estabelecido o uso de contraceptivos orais e o aparecimento de adenoma. Menos conclusiva é a ação destes na hiperplasia nodular focal.

MECANISMOS DE HEPATOTOXICIDADE

Drogas intrinsecamente hepatotóxicas

   Hepatotoxinas potentes foram excluidas do arsenal clínico. O tetracloreto de carbono, outrora usado como um poderoso vermífugo; clorofórmio, usado como anestésico por mais que um século; ácido tânico, usado para tratamento de queimados há algumas décadas e para radiografia intestinal há 20 anos.

   Alguns outros agentes potencialmente hepatotóxicos continuam sendo usados na prática clínica. Alguns, como o acetaminofem e ferro inorgânico, são hepatotóxicos em superdosagens (o acetaminofeno pode ser hepatotóxico em doses modestas em pacientes susceptíveis, como os etilistas, sendo comum a tentativa de suicídio com essa medicação no Reino Unido, devido em parte à venda em grandes frascos). Outros (antimicrobianos, quimioterápicos e esteróides anabolizantes) apresentam toxicidade dose-dependente. Alguns provocam esteatose; outros provocam necrose. Esteróides levam a colestase.

   A tetraciclina é citotóxica. Altas doses podem levar a esteatose microvesicular. Essa lesão tem significância clínica apenas quando a administração é por via endovenosa, maior que 1 grama / dia e principalmente no terceiro trimestre da gestação ou em insuficiência renal.

   A l-asparaginase, uma enzima isolada de culturas de E. coli que é usada no tratamento de leucemia, também leva a esteatose. A mercaptopurina, um agente antimetabólico usado em quimioterapia, produz necrose hepática. O etanol também se classifica entre as hepatotoxinas.

Lesão hepática idiossincrática

   É, por definição, uma lesão hepática provocada por droga que ocorre imprevisivelmente em uma pequena porcentagem dos pacientes, como uma expressão de uma susceptibilidade individual incomum e não por toxicidade intrínseca do agente. A idiossincrasia pode ser imunológica (hipersensibilidade) ou metabólica. A última reflete um metabolismo aberrante da droga no paciente susceptível.

   O dano hepático pode ser atribuído à hiperssensibilidade quando é acompanhada de quadro clínico (febre, rash, eosinofilia) e histológico (inflamação granulomatosa ou eosinofílica) compatível. Essas características, somadas à pronta recidiva da síndrome após resposta a um teste de desafio, permite a inferência de que houve alergia à droga ou que esta ou um de seu metabólitos agiu como um hapteno. O período de sensibilização varia de 1 a 5 semanas. Exemplos de drogas nessa categoria incluem sulfonamidas, dapsona e sulindac.

   A falta de padrão clínico ou laboratorial de hipersensibilidade ou de recorrência após o desafio sugere um mecanismo alternativo, presumivelmente a formação de metabólitos tóxicos ou inabilidade inerente de detoxicá-los. Os períodos de latência variam amplamente, de semanas a meses. Exemplos mais comuns são a isoniazida, valproato, maleato de perhexileno e amiodarona.

Patogênese da lesão

   A conversão de uma droga para um metabólito tóxico pode incluir radicais livres, radicais eletrofílicos ou oxigênio ativado.

   Radicais livres (espécies reativas do oxigênio) levam a lesão peroxidativa dos lipídeos da membrana e conseqüentemente necrose (por exemplo, CCI4). Não é um fator importante na hepatotoxicidade.

   Radicais eletrofílicos se ligam covalentemente a moléculas-chave na membrana celular, prejudicando sua função e levando a necrose. Acreditava-se que era o mecanismo de lesão do acetaminofeno, isoniazida e algumas outras drogas, mas aparentemente o stress oxidativo é mais importante que a ligação covalente nesse tipo de lesão. Metabólitos eletrofílicos presumivelmente podem se ligar covalentemente a proteínas e formar neoantígenos, nas reações devido a idiossincrasia imunológica.

   O oxigênio ativado parece agir mais na lesão pulmonar causada por drogas (paraquat, nitrofurantoína) do que na hepática. No entanto, em circunstâncias de stress oxidativo pode auxiliar em outra lesão por drogas (acetaminofeno).

Toxificação e detoxificação de drogas

   O metabolismo das drogas pode ser considerado em duas fases, ambas microssomais. A fase I, citocromo P-450 mediada, é primariamente oxidativa e produz os metabólitos intermediários ativos que podem ser hepatotóxicos. A fase II é pricipalmente conjugativa, convertendo o metabólito ativo em produtos atóxicos e mais hidrofílicos, ligando-os a glutationa, glucoronato ou sulfato. Portanto, poderíamos chamar a fase I de toxificação e a fase II de detoxificação. Algumas drogas podem causar lesão por aumento da toxificação (CCI4) e outras por diminuição da detoxificação (fenitoína), ou ambas (acetaminofeno).

   O citocromo P-450, a enzima-chave na fase I, é na verdade um conjunto de isoenzimas, com pelo menos 30 diferentes. A responsável pela conversão do acetaminofem ao seu intermediário tóxico, por exemplo, é induzida pelo etanol, explicando o aumento da toxicidade do acetaminofeno relacionada ao uso de álcool.

LESÃO HEPÁTICA CAUSADA POR SUPERDOSAGEM

   Acetaminofeno, aspirina e sulfato ferroso estão nessa categoria. Em doses terapêuticas, a fenilbutasona e a carbamazepina podem levar a lesão idiossincrática; no entanto, no envenenamento pode levar a lesão severa, sugerindo ação hepatotóxica intrínseca.

   O acetaminofeno é uma droga hepatotóxica típica. É um analgésico e antipirético leve com poucos efeitos colaterais quando tomado em doses terapêuticas de 1 a 4 gramas diários. Quando tomado em doses únicas de 15 gramas ou mais, pode levar a necrose centrolobular (zona 3) e falência hepática. Isso pela alta concentração de citocromo P-450 na zona 3. A taxa de lesão pelo acetaminofeno, portanto, depende da dose administrada, a taxa de biotransformação (toxificação) e a quantidade tecidual de glutationa (detoxificação). Experimentalmente, o uso de acetilcisteína e cimetidina inibem a lesão hepática. O primeiro por aumentar os níveis de glutationa e o segundo por inibir o sistema citocromo P-450. Alcoólatras, além de apresentarem indução de P-450 pelo álcool, têm menor quantidade de glutationa pela doença e estilo de vida.

   A aspirina e outros salicilatos podem produzir dano hepático como um fenômeno cumulativo lento, exigindo dias ou semanas para se desenvolver. É dose-dependente, geralmente por doses diárias maiores que 4 a 6 gramas. A susceptibilidade pode ser aumentada por febre reumática ativa, artrite reumatóide, lupus eritematoso sistêmico e talvez, por hepatopatia pré-existente.

A lesão por sulfato ferroso, geralmente após grande ingestão acidental por crianças, é similar à que ocorre com o acetaminofeno, à exceção que a necrose surge na periferia lobular.

Artigo criado em: 2001

Última revisão: 2006